Carta O Berro.........................................................repassem
OS MUSEUS DA RESISTÊNCIA
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José Ribamar Bessa Freire19/08/2012
- Diário do Amazonas
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OS MUSEUS DA RESISTÊNCIA
José Ribamar Bessa Freire
19/08/2012 - Diário do Amazonas
Ramires Maranhão do Valle
(1950-1973)
Combatia a ditadura militar.
Quando foi preso e torturado, em 1973, tinha 22 anos, o porte franzino e uma
cara de menino. Seu paradeiro foi criminosamente ocultado pelas autoridades.
Foi ai que o nome de Ramires Maranhão do Valle passou a figurar na lista dos
"desaparecidos políticos". Mas na última segunda feira, ele apareceu,
redivivo, numa defesa de mestrado na Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO) e nos observou, com seu olhar tímido, cheio de candura, a
partir de uma foto sua que permaneceu projetada num telão durante todo o
evento. Juro que sua voz emergia do texto impresso e ouvimos até o palpitar do
seu coração.
Quem insistiu para que ele
estivesse lá, conosco, foi seu sobrinho, Carlos Beltrão do Valle, autor da
dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS).
Afinal, ninguém com mais legitimidade do que Ramires para avaliar o trabalho
que discute a proposta de transformar os locais de tortura em museus, com o
objetivo de ativar memórias reprimidas e silenciadas, seguindo a lição de Mário
Chagas: "o museu,
como instituição, pode servir tanto para tiranizar como para libertar".
O foco escolhido foi o prédio do
DEOPS de São Paulo, onde funciona o Memorial da Resistência, inaugurado em
2009. Esse é o primeiro centro de tortura do Brasil que foi musealizado. Por
suas celas passaram o escritor Monteiro Lobato, a presidente Dilma Rousseff, o
ex-presidente Lula e o ex-governador de São Paulo José Serra. Recentemente
outro memorial foi erguido no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio, onde
Ramires foi sepultado, clandestinamente, numa cova rasa, com outros militantes.
Carlos Beltrão não era nem
nascido quando o tio foi assassinado. Aprendeu a amá-lo através das narrativas
familiares contadas pelo avô Francisco, o pai Romildo e a mãe Sônia - todos
eles militantes. Dedicou a ele sua pesquisa de mestrado, para a qual
entrevistou ex-presos do Rio, de São Paulo e de Recife, consultou jornais e
documentos em arquivos, leu depoimentos em livros autobiográficos cujos autores
relatam experiências na prisão, analisou peças de teatro e filmes sobre o tema
e acompanhou visitas ao Memorial da Resistência para avaliar a reação do
público.
Lugares de Memória
A dissertação compara a
musealização dos centros de tortura no Brasil com a experiência de sítios de
consciência e de memória em outros países como Argentina, Chile, Paraguai,
Uruguai, destacando o Museu do Apartheid na África do Sul e o Museu da
Resistência em Amsterdã. A análise de todo esse material foi feita com ajuda
dos teóricos que refletiram sobre a memória e o patrimônio.
Foram muitos os centros de tortura
que funcionaram no Brasil entre 1964 e 1985. Recente pesquisa da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) mapeou 82 deles, dos quais 13 se
localizavam no Rio. Mas a dissertação registra 212 listados por Rubim Aquino,
muitos até então desconhecidos, outros destruídos na intenção de apagar a
memória do local. O próprio prédio do DEOPS de São Paulo apagou marcas e
registros relevantes, entre as quais as inscrições feitas pelos presos nas
paredes das celas, que tiveram de ser reconstituídas.
Registro feito
em meados da década de 1990 mostra que as paredes das celas do
DEOPS já haviam sido raspadas antes da reforma. Fotos: Fernando
Braga. Acervo: APESP.
Essa
política deliberada de organização do esquecimento é analisada na dissertação,
cujo fio condutor usa a noção de "esquecimento ativo" de Nietzsche,
para quem é importante esquecer, mas para isso é necessário saber. "A
gente só pode esquecer aquilo que a gente sabe". O caso do DEOPS ilustra
muito bem a luta em busca da memória perdida. Depois da reforma que destruiu
algumas celas, os organizadores do Memorial decidiram mostrar a estrutura original
daquele centro de tortura, confeccionando uma maquete. Para isso, porém,
tiveram de se apoiar no relato oral de ex-presos políticos, porque não
encontraram sequer uma planta do prédio.
Os documentos são escondidos ou
destruídos, como ocorreu mais recentemente no governo Sarney, quando os
militares reprimiram a greve de 1988, invadindo a sede da Companhia Siderúrgica
Nacional. O saldo foram três metalúrgicos mortos e dezenas de feridos. Na
semana passada, a Folha de São Paulo tentou consultar a documentação e invocou
a Lei de Acesso à Informação, mas o Exército respondeu que ela havia sido
eliminada.
Os documentos ou foram
destruídos, ou permanecem inacessíveis ou ainda estão em mãos de particulares,
como o "baú do Bandeira" - os arquivos da Guerrilha do Araguaia - que
segundo um dos depoimentos estão em mãos da filha do general Bandeira. "O
Governo não tem forças pra dizer: entrega esse material, que é público",
disse Cecília Coimbra, uma das depoentes, que fez parte da banca.
Contra essa política do esquecimento
é que se construiu o Memorial da Resistência, com a assessoria do Fórum
Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. A ideia
que prevaleceu foi a de não priorizar a tortura, que efetivamente existiu, nem
de glorificar os heróis, individualmente, mas de centrar na luta coletiva,
articulando as memórias do passado com o presente. O Memorial deve mostrar que
"apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade. Derrotamos a
ditadura" - diz Alipio Freire, um dos ex-presos entrevistados.
Ramires
vivo
Durante
a defesa, foi citado poema de Bertold Brecht. Numa prisão italiana, um preso
político com uma faca escreveu na parede de sua cela em letras garrafais: VIVA LENIN!
Os guardas viram e mandaram um pintor com um balde de cal apagar a inscrição.
Com um pincel, ele cobriu letra por letra, o que destacou ainda mais as
palavras. Um segundo pintor foi então enviado e cobriu tudo com tinta escura,
mas quando secou, horas depois, as letras teimosas apareceram em relevo.
Chamaram então um pedreiro, que com uma talhadeira cavou profundamente, letra
por letra, a frase na parede. “Agora, derrubem a parede” – disse o preso
socialista.
Quanto mais tentam apagar, mais
destacadas ficam as memórias de presos políticos. O depoimento de Cecília
Coimbra registra o "trabalho de detetive" feito pelo Grupo Tortura
Nunca Mais (GTNM) do Rio de Janeiro para localizar a sepultura de Ramires quase
vinte anos após sua morte. Seu irmão, Romildo, soube da existência de uma vala
clandestina no cemitério de Ricardo de Albuquerque, na periferia. Depois de
muita luta e muita burocracia, conseguiram autorização para checar os livros do
Instituto Médico Legal (IML). Quem conta é Cecília no depoimento dado a Carlos
Beltrão:
"Fomos
abrindo e vimos no livro, em outubro de 1973: um homem desconhecido, outro
homem desconhecido e uma mulher (Ranúsia Alves Rodrigues). Aí a gente olhou de
onde veio: a praça Sentinela em Jacarepaguá. Aí o Romildo disse: são eles,
Cecília! Encontrei meu irmão! São eles! Eu disse: calma, Romildo! Vamos pro
cemitério de Ricardo de Albuquerque, Romildo, calma! Eu fico arrepiada quando
me lembro disso.(...) Aí fizemos todo um levantamento, ano, mês, dia. Depois,
nós fomos para os livros de entrada e saída, um livro enorme...e depois pedi as
fotos. Teu pai reconheceu o teu tio, carbonizado".
Já no
cemitério de Ricardo de Albuquerque, outra luta para localizar a sepultura.
Conversaram com o coveiro mais antigo, que deu a dica. A vala clandestina
estava escondida, coberta por gavetas, mas o GTNM conseguiu, através do então
vice-governador Nilo Batista, que as gavetas fossem retiradas e a vala aberta.
"A gente conseguiu autorização, via Ministério Publico, e a Santa Casa já
autorizou a construir lá um memorial, pequeno, mas que estamos querendo
preservar o local e a memória" - conta Cecília.
Algumas páginas da dissertação
são dedicadas a repertoriar os "esculachos populares", que começaram
a ocorrer em onze estados de diferentes cidades do Brasil, a exemplo da
Argentina e do Chile. Posto que no Brasil nenhum torturador foi preso pelo
crime cometido contra a humanidade, que pelas normas internacionais não
prescreve, os "esculachos" são manifestações públicas realizadas
diante das residências dos torturadores, denunciando-os aos vizinhos e à
sociedade. Funcionam como uma punição moral. Nesse sentido, a dissertação
serviu para mostrar que o "esculacho", em defesa da memória,
conquistou um espaço acadêmico.
No final, quem está vivo é
Ramires, com seus sonhos alados. Quem foi sepultado no lixão da História foram
os torturadores apontados nos esculachos, assim como o coronel reformado Carlos
Alberto Brilhante Ulstra responsabilizado, nesta semana, como torturador, em
decisão inédita do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Durante
manifestação, a conhecida imagem da morte de Vladmiri Herzog
"armada" pela repressão foi projetada na parede do Clube
Militar do Rio de Janeiro. Foto: Moana Maywall.P.S. - Carlos Beltrão do Valle:
A patrimonialização e a musealização de lugares de memória da ditadura de 1964
- o Memorial da Resistência de SP. 371 pgs. Dissertação de Mestrado apresentada
no dia 13 de agosto de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Banca Examinadora: Marília
Xavier Cury (orientadora), José Ribamar Bessa Freire (PPGMS/UNIRIO), Cecília
Maria Bouças Coimbra (PPGP/UFF) e Joana D'Arc Fernandes Ferraz (PPGAd/UFF).
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