CARTASE PEDAGÓGICA - Giz e Livros
Eu em cima da bancada durou até três anos e meio. Minha mãe dentro de suas limitações nunca desistia. Queria me ver andar. Todas as crenças, remédios, vitaminas, do receituário das comadres, me elegiam como cobaia. Principalmente de uma enfermeira prática, a dona Izaura, que depois de cumprir seu plantão, medicava a todos. Um dia ela chegou e contou minha mãe de um medico Dr. Jose Henrique da Mata Machado, ortopedista, teria vindo dos Estados Unidos e iria comandar o Hospital da Baleia. Claro que minha mãe aceitou me levar. Botou-me no colo e lá fomos nós pegar uma jardineira perto daquela floricultura, na Bahia com Afonso Pena. Pra aquela época era uma viagem, inclusive tinha que atravessar a mata da Baleia para chegar ao hospital. Conseguiu a consulta e o medico marcou retorno para apresentar o tratamento que faria. Minha mãe tinha mania de anotar tudo, e ficamos por lá o resto do dia esperando a jardineira de volta, para o caminho de casa. Meu pai deu um show, ela era doida, quais as garantias que tinha, aquilo era coisa de rico. Só que minha mãe já tinha tomado sua decisão, depois disso poderia ser provocada do jeito que fosse, não abria a boca.
Imagine esta cena: comprou um canivete, escondeu na bolsa, arrumou uma sacola com pão, banana, partiu outra vez para o ponto da jardineira, de madrugada, outra vez atravessando a mata. Se houvesse o ataque de algum bicho ou marginal, ela teria que me colocar no chão, eu e a sacola, pedir um tempo ao imprevisto, procurar dentro da bolsa o canivete, abrir, criar coragem e partir pra briga. Bobagem tentar convencê-la de que não teria tempo hábil.
Chegamos e o medico disse: a menina tem que ficar aqui. Não posso especificar o tempo. Como não têm condições de pagamento, a solução é arrumarem doação de sangue. Aí entra meu pai, todos os tios, amigos. Com o tempo ele foi criando coragem e aparecendo, principalmente fora dos dias e horários de visitas. Procurava saber de toda minha rotina, conversava com o medico, como e quem passava do meu lado. Chegava sempre com algum agrado para alguma irmã ou enfermeira. Pouca coisa, mas caprichosamente escolhida. Minha mãe não sabia disso, acreditava que tudo lhe era totalmente indiferente, troca de neuroses familiares.
A cada três meses era colocado gesso, do peito para baixo, com um estica encolhe de tração. Naquele local eu era muito mimada como paciente do Dr. Henrique. Na rotina da enfermaria, por um tempo, aparecia, após as dezoito horas, uma irmã de caridade, de idade avançada que falava sem parar e não dormia a noite. Sua função era percorrer todas as dependências do andar, conferindo as fechaduras ou levando noticias de algum imprevisto. Quando ela cansava, ia para o lado de minha cama, puxava assunto, contava histórias. Não tinha muito nexo, mas não deixava de ser calor humano. Uma outra mania era colocar balas num bolso enorme, porque era proibida de fazer isto pelas outras irmãs, por causa do diabetes. A bala era dura, azedinha apesar de ser revestida de açúcar cristal. Isto feria a minha boca, porque depois de mastigar umas quatro ou cinco, eu ficava com uma do lado da boca até no dia seguinte. Quando descobriram isto, suspenderam o plantão da irmã.
Com seis anos e pouco, apareceu na ala dos pagantes uma moça recém formada em magistério, que tinha sofrido um acidente grave, e estava engessada do pescoço para baixo. Entrou em depressão profunda e a família perguntou se não havia criança “educada” que tivesse condições de ser alfabetizada. Lá fui eu. Estava começando a minha possibilidade de alta e já fazia uns exercícios contornando a minha cama. As três horas, uma enfermeira me levava até ao quarto dela, e me colocavam numa poltrona em que ficávamos de frente uma da outra. Para que eu não assustasse com a figura, vieram umas três mulheres até mim fazendo festa e de pronto me entregando um pacote. Nunca tinha visto aquilo: uma pasta de couro simples, mais linda, lápis comum, lápis de cor, borracha, apontador, tesourinha, toalhinha, estojo, garrafinha para água, e livros, livros...tudo meu.
Ela ditava para que passassem o exercício no quadro, lia, explicava, eu fazia, ela corrigia. No final ela ficava irritada e dizia que não queria mais, que me levassem embora. Mas eu aproveitava tudo, observando, tentando com meus poucos recursos entender seu raciocínio. Só o QVL (quadro de valor e lugar) é que nunca consegui, nem para enganar.
Na volta, eu inventava que estava dando aula para meus alunos. Colegas da enfermaria faziam que entendiam. Agüentavam com paciência aquela cantilhena. Só eu na ala tinha livros e material escolar. Era poderosa!
Completei por ali os sete anos, só que quando saí já era março e, também por ser nascida no mês de junho, não poderia mais ser matriculada no grupo escolar. Na pracinha Francisco, Teófilo Otoni com Espinosa, morava uma alfabetizadora, Professora Maria José, aposentada, que dava aulas particulares. Como eu abria a boca a chorar escandalosamente, quando as crianças iam para o Grupo Escolar Melo Viana, meus pais se viraram e me pagarem a aula particular com esta Professora. Por um bom tempo, tive atendimento exclusivo. Foi combinado 1h e meia, mas como nós duas conversávamos muito, raramente eram menos de 4h de produção. Eu já copiava, escrevia meu nome e mais algumas palavras, tinha letra bonita, reconhecia os números, memorizava a tabuada. Fiquei até o final do ano com ela.
Com oito anos, consegui a matricula no Grupo Escolar Melo Viana, e mais uma vez tive sorte. Fiz teste e fui enturmada na melhor sala, a da Professora Dona Áurea, onde permaneci por dois anos. Esta sala era de mais ou menos 40 alunos, limpíssima, arejada, decorada com cartazes, números, alfabeto maiúsculo e minúsculo, mapa do Brasil e do Corpo humano. Tinha lugar para tudo. E os alunos se revezavam nas obrigações de quem iria cuidar de que. Como a minha letra estava muito pequena, a condição de permanência nesta turma seria exercícios de caligrafia, e a responsável por conseguir isto com prazo estipulado seria minha mãe. Tinha como escapar? Não. Com muito “bico” a tarefa foi cumprida. Dois anos de vigilância corpo a corpo. Cheguei ao terceiro e quarto ano, com a sorte de permanecer na mesma turma, mas minha Professora agora seria Dona Antonia, competentíssima, mas com fama de mais brava ainda. Dizia que descascava seus alunos para que nenhuma outra o fizesse. Ái de quem pisasse na bola. De cem a quinhentas vezes a cópia “não devo...” era imediato.
Raramente perdia um aluno por não andar direito. O tradicional “a filha de Milton”, a aluna de Dona Áurea, a aluna de Dona Antonia. Se a gente cometesse alguma falta, a melhor solução era falar direto com nossos donos para que nos dessem correção. E depois dessa correção, alguém queria outra pelo mesmo motivo?
Ia me esquecendo: o dia da entrega dos boletins. Medo, pânico, expectativa, previsões.
O trabalho destas pessoas tinham muito nesta fase, sinais e fazeres da teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gadner, no caso à medida que essas professoras atendiam seus alunos respeitando suas diversidades e, por que não, as suas diferentes possibilidades; também as de Jean Piaget, desenvolvimento da inteligência e da construção do conhecimento, onde imperava a lapidação do pensamento, após vários questionamentos e solicitações, porque após a exposição da montagem de um raciocínio, entre outras, você era obrigado a dar exemplos. Se houvesse hábito do Professor registrar isto, essas teorias não seriam tão estrangeiras assim, e, por certo mais clarificadas nas suas práticas. Isto porque, poderiam até não estar agindo conscientemente em etapas cientificas, mas como grandes artistas também satisfaziam o alcance de mútuos objetivos.
Eu em cima da bancada durou até três anos e meio. Minha mãe dentro de suas limitações nunca desistia. Queria me ver andar. Todas as crenças, remédios, vitaminas, do receituário das comadres, me elegiam como cobaia. Principalmente de uma enfermeira prática, a dona Izaura, que depois de cumprir seu plantão, medicava a todos. Um dia ela chegou e contou minha mãe de um medico Dr. Jose Henrique da Mata Machado, ortopedista, teria vindo dos Estados Unidos e iria comandar o Hospital da Baleia. Claro que minha mãe aceitou me levar. Botou-me no colo e lá fomos nós pegar uma jardineira perto daquela floricultura, na Bahia com Afonso Pena. Pra aquela época era uma viagem, inclusive tinha que atravessar a mata da Baleia para chegar ao hospital. Conseguiu a consulta e o medico marcou retorno para apresentar o tratamento que faria. Minha mãe tinha mania de anotar tudo, e ficamos por lá o resto do dia esperando a jardineira de volta, para o caminho de casa. Meu pai deu um show, ela era doida, quais as garantias que tinha, aquilo era coisa de rico. Só que minha mãe já tinha tomado sua decisão, depois disso poderia ser provocada do jeito que fosse, não abria a boca.
Imagine esta cena: comprou um canivete, escondeu na bolsa, arrumou uma sacola com pão, banana, partiu outra vez para o ponto da jardineira, de madrugada, outra vez atravessando a mata. Se houvesse o ataque de algum bicho ou marginal, ela teria que me colocar no chão, eu e a sacola, pedir um tempo ao imprevisto, procurar dentro da bolsa o canivete, abrir, criar coragem e partir pra briga. Bobagem tentar convencê-la de que não teria tempo hábil.
Chegamos e o medico disse: a menina tem que ficar aqui. Não posso especificar o tempo. Como não têm condições de pagamento, a solução é arrumarem doação de sangue. Aí entra meu pai, todos os tios, amigos. Com o tempo ele foi criando coragem e aparecendo, principalmente fora dos dias e horários de visitas. Procurava saber de toda minha rotina, conversava com o medico, como e quem passava do meu lado. Chegava sempre com algum agrado para alguma irmã ou enfermeira. Pouca coisa, mas caprichosamente escolhida. Minha mãe não sabia disso, acreditava que tudo lhe era totalmente indiferente, troca de neuroses familiares.
A cada três meses era colocado gesso, do peito para baixo, com um estica encolhe de tração. Naquele local eu era muito mimada como paciente do Dr. Henrique. Na rotina da enfermaria, por um tempo, aparecia, após as dezoito horas, uma irmã de caridade, de idade avançada que falava sem parar e não dormia a noite. Sua função era percorrer todas as dependências do andar, conferindo as fechaduras ou levando noticias de algum imprevisto. Quando ela cansava, ia para o lado de minha cama, puxava assunto, contava histórias. Não tinha muito nexo, mas não deixava de ser calor humano. Uma outra mania era colocar balas num bolso enorme, porque era proibida de fazer isto pelas outras irmãs, por causa do diabetes. A bala era dura, azedinha apesar de ser revestida de açúcar cristal. Isto feria a minha boca, porque depois de mastigar umas quatro ou cinco, eu ficava com uma do lado da boca até no dia seguinte. Quando descobriram isto, suspenderam o plantão da irmã.
Com seis anos e pouco, apareceu na ala dos pagantes uma moça recém formada em magistério, que tinha sofrido um acidente grave, e estava engessada do pescoço para baixo. Entrou em depressão profunda e a família perguntou se não havia criança “educada” que tivesse condições de ser alfabetizada. Lá fui eu. Estava começando a minha possibilidade de alta e já fazia uns exercícios contornando a minha cama. As três horas, uma enfermeira me levava até ao quarto dela, e me colocavam numa poltrona em que ficávamos de frente uma da outra. Para que eu não assustasse com a figura, vieram umas três mulheres até mim fazendo festa e de pronto me entregando um pacote. Nunca tinha visto aquilo: uma pasta de couro simples, mais linda, lápis comum, lápis de cor, borracha, apontador, tesourinha, toalhinha, estojo, garrafinha para água, e livros, livros...tudo meu.
Ela ditava para que passassem o exercício no quadro, lia, explicava, eu fazia, ela corrigia. No final ela ficava irritada e dizia que não queria mais, que me levassem embora. Mas eu aproveitava tudo, observando, tentando com meus poucos recursos entender seu raciocínio. Só o QVL (quadro de valor e lugar) é que nunca consegui, nem para enganar.
Na volta, eu inventava que estava dando aula para meus alunos. Colegas da enfermaria faziam que entendiam. Agüentavam com paciência aquela cantilhena. Só eu na ala tinha livros e material escolar. Era poderosa!
Completei por ali os sete anos, só que quando saí já era março e, também por ser nascida no mês de junho, não poderia mais ser matriculada no grupo escolar. Na pracinha Francisco, Teófilo Otoni com Espinosa, morava uma alfabetizadora, Professora Maria José, aposentada, que dava aulas particulares. Como eu abria a boca a chorar escandalosamente, quando as crianças iam para o Grupo Escolar Melo Viana, meus pais se viraram e me pagarem a aula particular com esta Professora. Por um bom tempo, tive atendimento exclusivo. Foi combinado 1h e meia, mas como nós duas conversávamos muito, raramente eram menos de 4h de produção. Eu já copiava, escrevia meu nome e mais algumas palavras, tinha letra bonita, reconhecia os números, memorizava a tabuada. Fiquei até o final do ano com ela.
Com oito anos, consegui a matricula no Grupo Escolar Melo Viana, e mais uma vez tive sorte. Fiz teste e fui enturmada na melhor sala, a da Professora Dona Áurea, onde permaneci por dois anos. Esta sala era de mais ou menos 40 alunos, limpíssima, arejada, decorada com cartazes, números, alfabeto maiúsculo e minúsculo, mapa do Brasil e do Corpo humano. Tinha lugar para tudo. E os alunos se revezavam nas obrigações de quem iria cuidar de que. Como a minha letra estava muito pequena, a condição de permanência nesta turma seria exercícios de caligrafia, e a responsável por conseguir isto com prazo estipulado seria minha mãe. Tinha como escapar? Não. Com muito “bico” a tarefa foi cumprida. Dois anos de vigilância corpo a corpo. Cheguei ao terceiro e quarto ano, com a sorte de permanecer na mesma turma, mas minha Professora agora seria Dona Antonia, competentíssima, mas com fama de mais brava ainda. Dizia que descascava seus alunos para que nenhuma outra o fizesse. Ái de quem pisasse na bola. De cem a quinhentas vezes a cópia “não devo...” era imediato.
Raramente perdia um aluno por não andar direito. O tradicional “a filha de Milton”, a aluna de Dona Áurea, a aluna de Dona Antonia. Se a gente cometesse alguma falta, a melhor solução era falar direto com nossos donos para que nos dessem correção. E depois dessa correção, alguém queria outra pelo mesmo motivo?
Ia me esquecendo: o dia da entrega dos boletins. Medo, pânico, expectativa, previsões.
O trabalho destas pessoas tinham muito nesta fase, sinais e fazeres da teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gadner, no caso à medida que essas professoras atendiam seus alunos respeitando suas diversidades e, por que não, as suas diferentes possibilidades; também as de Jean Piaget, desenvolvimento da inteligência e da construção do conhecimento, onde imperava a lapidação do pensamento, após vários questionamentos e solicitações, porque após a exposição da montagem de um raciocínio, entre outras, você era obrigado a dar exemplos. Se houvesse hábito do Professor registrar isto, essas teorias não seriam tão estrangeiras assim, e, por certo mais clarificadas nas suas práticas. Isto porque, poderiam até não estar agindo conscientemente em etapas cientificas, mas como grandes artistas também satisfaziam o alcance de mútuos objetivos.
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