“Pra não dizer que não falei das flores”
– Geraldo Vandré
Em 1970 estava com 23 anos. Não posso dizer que fui uma ativista política. Nunca li Marx, nem seus companheiros, a não ser uma meia dúzia de textos na faculdade. Não pertencia a nenhum movimento de base, não professava nenhuma religião. Não tinha ídolos políticos. Isso não quer dizer que muita das suas teorias não me encantava e me fizeram facilmente tendenciosa, pra dita esquerda, é claro.
Na realidade não era muito aceita, nem pela esquerda e nem pela direita. Sempre tive uma independência que para muitos era irritante.
Quando dizia alguma coisa, ousava fundamentar, buscando a lógica existente ou não.
Neste espaço, estas duas forças estavam fortemente representadas, e pelo tempo de luta entre elas, a disputa pelo comando era acirrada. O ambiente demonstrava neutralidade para as convivências, e eu só conseguia sobreviver ali porque dizem que os “anjos protegem os inocentes”. Não era alienação, mas sentia que o caminho era esse e íamos em frente.
Dessas duas competentes secretárias, uma era católica e a outra do mundo.
A razão social que amparava a existência jurídica do ginásio pertencia oficialmente as Obras Sociais Senhora da Glória, do Bairro 1º de Maio, ligada ao Verbo Divino.
Por mais ou menos dois anos consecutivos, delegaram o fazer do administrativo, como responsável direto, dentro das forças das circunstancias, a uma pessoa que se auto-responsabilizava, um representante da comunidade, que alguns diziam ser ex-investigador do Dops.
Fazia as folhas de pagamento e recolhimento de impostos, cuidava das cadernetas dos alunos, dispensava-os quando necessário. E complicava muito, mais que podia. Só que o serviço administrativo era feito no ginásio e só se prestava conta quando o frei aparecia. Era sempre presente, mas não com agenda fixa.
Enquanto a Secretaria de Educação não ia impondo nas suas exigências, esta convivência não provocava maiores impasses. Mas isto mudou com o tempo. A escola era invadida, depredada, os poderes públicos vinham com freqüência fazer seus levantamentos, suas cobranças, suas multas, que muita das vezes estava atrasada.
Os freis da igreja supervisionavam, assinavam, conferiam balancetes, revertiam no dinheiro da época, os dólares e o dinheiro holandês, recebidos nas doações organizadas pelo Frei Raul. Não era muita coisa, porque na apresentação das prestações de contas aos doadores, estava sempre alguma parte descoberta. No final desta nossa temporada, não vinha mais quase nada.
Como novo pároco na comunidade, Frei Raul Ruijs, quis olhar de perto o que estava acontecendo e muitas coisas adquiridas, mantidas e vitoriosas se deve ao esforço pessoal dele.
Nós buscávamos nos organizar o mais rápido possível para começar a regularizar a folha de pagamento dos professores. Zerar os 30% das doações.
Fazia parte dos nossos propósitos ir abaixando esta faixa até pagar o que era salário legal, mesmo que mínimo da tabela do sindicato. Até o final do primeiro ano, o salário passou a ser recebido integral.
Estas contribuições mesmo que “voluntárias” não eram reconhecidas pela lei, e na hora de acertos no sindicato dos professores, alguns começaram pleitear essa diferença. Ganhavam. De certa forma estavam certos. Isto começou a ficar freqüente. Mal conseguíamos estabilizar o caixa, vinha um rombo.
Já no desenrolar do segundo ano, em uma assembléia geral das Obras Sociais, Frei Raul foi eleito como diretor administrativo, procurando intensificar a regulamentação escrita de pagamentos e impostos, ficar a todo custo dentro da lei.
Levou o contrato a um renomado contador que era responsável pela escrita administrativa dos franciscanos e a organização ficou ótima. Fiquei como diretora pedagógica, mas responsável direta por tudo.
Essa reorganização não facilitou o meu lado. O processo de comunicação era muito interessante: não se tinha certeza, no primeiro momento de que se era entendido e nem tão pouco que seria acatado. No caso, a onda de boatos, numerosas denúncias, das mais simples as mais complicadas, questionamentos dos grupos de professores, dos pais, de pessoas que chegavam com credenciais estranhas, eram quase que constantes.
O modo de agir do grupo continuava o mesmo. Enquanto não passasse por uma ferrenha sabatina, as coisas não andavam, inclusive pedagogicamente. Tinha-se que exercitar muito o convencimento junto com a paciência, para não desistir, ou como minha mãe falava, “para não perder a classe”.
O aval final das pessoas que estavam do meu lado seria dado sempre pelas duas fiéis secretárias. Custei a conseguir que isso virasse rotina. Então tudo que decidíamos beirava a perfeição, ousadia, inovação.
O comando da Igreja resolveu tirar Frei Raul do local, argumentando que ele estava muito envolvido com a comunidade. Ele passou uns tempos de longe, sediado na paróquia do Sto. Antonio, e logo após foi transferido para Petrópolis, levando consigo um câncer metastático.
Este ambiente localizado numa comunidade periférica, tinha características bem especificas alem de não ter telefone. Era uma comunidade tida como engajada. Só que cada um entendia isso e praticava a sua maneira.
Seu estado de isolamento poderia ser complicado de uma hora para outra. Todo problema que se encontrava, se fosse urgente, tinha que ser tentada sua solução por ali mesmo, da forma e com os recursos que tivesse. Socorro era de difícil a impossível.
Exemplo disso foi uma batida policial em massa, sem “ninguém” saber a finalidade, fechando a entrada do morro, parando em frente à escola. Sirene ligada e tudo mais. Eu nunca soube quem ou o que eles buscavam.
Com a saída de Frei Raul, a igreja abriu mão de uma participação efetiva, e como também os professores passaram a ser substituídos com maior freqüência, o clima passou a ficar insustentável. O medo era concreto. Com a nova eleição na assembléia, foi colocado como Diretor Administrativo o mesmo representante da comunidade, e para o Pedagógico uma professora de Historia, que após pouco tempo, montou o processo de transferência do ginásio para o Estado. Foi rápido. Escola Estadual Mendes Pimentel. Ginásio José de Anchieta Machado acabou.
– Geraldo Vandré
Em 1970 estava com 23 anos. Não posso dizer que fui uma ativista política. Nunca li Marx, nem seus companheiros, a não ser uma meia dúzia de textos na faculdade. Não pertencia a nenhum movimento de base, não professava nenhuma religião. Não tinha ídolos políticos. Isso não quer dizer que muita das suas teorias não me encantava e me fizeram facilmente tendenciosa, pra dita esquerda, é claro.
Na realidade não era muito aceita, nem pela esquerda e nem pela direita. Sempre tive uma independência que para muitos era irritante.
Quando dizia alguma coisa, ousava fundamentar, buscando a lógica existente ou não.
Neste espaço, estas duas forças estavam fortemente representadas, e pelo tempo de luta entre elas, a disputa pelo comando era acirrada. O ambiente demonstrava neutralidade para as convivências, e eu só conseguia sobreviver ali porque dizem que os “anjos protegem os inocentes”. Não era alienação, mas sentia que o caminho era esse e íamos em frente.
Dessas duas competentes secretárias, uma era católica e a outra do mundo.
A razão social que amparava a existência jurídica do ginásio pertencia oficialmente as Obras Sociais Senhora da Glória, do Bairro 1º de Maio, ligada ao Verbo Divino.
Por mais ou menos dois anos consecutivos, delegaram o fazer do administrativo, como responsável direto, dentro das forças das circunstancias, a uma pessoa que se auto-responsabilizava, um representante da comunidade, que alguns diziam ser ex-investigador do Dops.
Fazia as folhas de pagamento e recolhimento de impostos, cuidava das cadernetas dos alunos, dispensava-os quando necessário. E complicava muito, mais que podia. Só que o serviço administrativo era feito no ginásio e só se prestava conta quando o frei aparecia. Era sempre presente, mas não com agenda fixa.
Enquanto a Secretaria de Educação não ia impondo nas suas exigências, esta convivência não provocava maiores impasses. Mas isto mudou com o tempo. A escola era invadida, depredada, os poderes públicos vinham com freqüência fazer seus levantamentos, suas cobranças, suas multas, que muita das vezes estava atrasada.
Os freis da igreja supervisionavam, assinavam, conferiam balancetes, revertiam no dinheiro da época, os dólares e o dinheiro holandês, recebidos nas doações organizadas pelo Frei Raul. Não era muita coisa, porque na apresentação das prestações de contas aos doadores, estava sempre alguma parte descoberta. No final desta nossa temporada, não vinha mais quase nada.
Como novo pároco na comunidade, Frei Raul Ruijs, quis olhar de perto o que estava acontecendo e muitas coisas adquiridas, mantidas e vitoriosas se deve ao esforço pessoal dele.
Nós buscávamos nos organizar o mais rápido possível para começar a regularizar a folha de pagamento dos professores. Zerar os 30% das doações.
Fazia parte dos nossos propósitos ir abaixando esta faixa até pagar o que era salário legal, mesmo que mínimo da tabela do sindicato. Até o final do primeiro ano, o salário passou a ser recebido integral.
Estas contribuições mesmo que “voluntárias” não eram reconhecidas pela lei, e na hora de acertos no sindicato dos professores, alguns começaram pleitear essa diferença. Ganhavam. De certa forma estavam certos. Isto começou a ficar freqüente. Mal conseguíamos estabilizar o caixa, vinha um rombo.
Já no desenrolar do segundo ano, em uma assembléia geral das Obras Sociais, Frei Raul foi eleito como diretor administrativo, procurando intensificar a regulamentação escrita de pagamentos e impostos, ficar a todo custo dentro da lei.
Levou o contrato a um renomado contador que era responsável pela escrita administrativa dos franciscanos e a organização ficou ótima. Fiquei como diretora pedagógica, mas responsável direta por tudo.
Essa reorganização não facilitou o meu lado. O processo de comunicação era muito interessante: não se tinha certeza, no primeiro momento de que se era entendido e nem tão pouco que seria acatado. No caso, a onda de boatos, numerosas denúncias, das mais simples as mais complicadas, questionamentos dos grupos de professores, dos pais, de pessoas que chegavam com credenciais estranhas, eram quase que constantes.
O modo de agir do grupo continuava o mesmo. Enquanto não passasse por uma ferrenha sabatina, as coisas não andavam, inclusive pedagogicamente. Tinha-se que exercitar muito o convencimento junto com a paciência, para não desistir, ou como minha mãe falava, “para não perder a classe”.
O aval final das pessoas que estavam do meu lado seria dado sempre pelas duas fiéis secretárias. Custei a conseguir que isso virasse rotina. Então tudo que decidíamos beirava a perfeição, ousadia, inovação.
O comando da Igreja resolveu tirar Frei Raul do local, argumentando que ele estava muito envolvido com a comunidade. Ele passou uns tempos de longe, sediado na paróquia do Sto. Antonio, e logo após foi transferido para Petrópolis, levando consigo um câncer metastático.
Este ambiente localizado numa comunidade periférica, tinha características bem especificas alem de não ter telefone. Era uma comunidade tida como engajada. Só que cada um entendia isso e praticava a sua maneira.
Seu estado de isolamento poderia ser complicado de uma hora para outra. Todo problema que se encontrava, se fosse urgente, tinha que ser tentada sua solução por ali mesmo, da forma e com os recursos que tivesse. Socorro era de difícil a impossível.
Exemplo disso foi uma batida policial em massa, sem “ninguém” saber a finalidade, fechando a entrada do morro, parando em frente à escola. Sirene ligada e tudo mais. Eu nunca soube quem ou o que eles buscavam.
Com a saída de Frei Raul, a igreja abriu mão de uma participação efetiva, e como também os professores passaram a ser substituídos com maior freqüência, o clima passou a ficar insustentável. O medo era concreto. Com a nova eleição na assembléia, foi colocado como Diretor Administrativo o mesmo representante da comunidade, e para o Pedagógico uma professora de Historia, que após pouco tempo, montou o processo de transferência do ginásio para o Estado. Foi rápido. Escola Estadual Mendes Pimentel. Ginásio José de Anchieta Machado acabou.
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