ENTREVISTA
EVALDO CABRAL DE MELLO
Desde a Colônia, magistratura do país é
corporativista
Historiador define judiciário brasileiro como
"caixa preta" e critica seus pares por falta de ambição e sujeição a
modismos
ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO
Interesses públicos e privados entrecruzados. Uso
de cargos para obtenção de privilégios, ascensão social, enriquecimento. Perdas
de fortunas, recuperação de desastres. Incêndios, lutas, endividamentos,
calotes.
O enredo se passa no Nordeste brasileiro, entre o
final do século 16 e o início do 17, na época da dominação holandesa, e é o
cerne do recém-lançado "O Bagaço da Cana" (Companhia das Letras, 216
págs., R$ 23).
Especializado no tema, o historiador Evaldo Cabral
de Mello foi até o "porão" dos canaviais. Fez um recenseamento das
propriedades e de seus donos.
Como se fossem minirresumos de novelas, os relatos
revelam a crueza dos dramas. Mesmo no auge do domínio estrangeiro, a produção
canavieira chegou a apenas dois terços do que era antes da guerra.
Nesta
entrevista, Mello, 76, fala do livro e constata que "o brasileiro tem uma
visível incapacidade de conceber a esfera pública e, sobretudo, a objetividade
da lei.".
Mello ainda ataca a magistratura: "É uma caixa
preta".
Um dos maiores historiadores brasileiros, ele
critica a produção de história no país. Para ele, os profissionais estão conformados,
especializaram-se em demasia e seguem modas. "Não vejo ambição individual
de escrever grandes livros", declara.

Folha - Como foi a produção de "O Bagaço da
Cana"?
Evaldo Cabral de Mello - Durante todos esses anos
de atividade historiográfica, fui colecionando uma quantidade de informações
sobre os engenhos no período holandês. Pode ser útil para pesquisadores futuros.
Tratava-se apenas de eu me divertir um pouco nas horas em que não tinha o que
fazer. Não foi um livro com nenhuma ambição maior. Fui ver do porão como era a
atividade açucareira.
Na sua opinião, qual o principal destaque do livro?
A utilidade do livro está, sobretudo, na compilação
de 162 engenhos.
A documentação que usei é inexistente para qualquer
outra época ou qualquer outro lugar da historia colonial. Não se poderia fazer
com as fazendas de São Paulo do século 18 nem com os engenhos da Bahia do século
17. Porque a documentação holandesa era bem mais rica do que a portuguesa.
O livro mostra a ligação entre as esferas públicas
e privadas, entre senhores de engenho e governantes.
O sr. vê continuidade desse processo hoje?
Vê-se isso em todo o Brasil. A incapacidade de
distinguir as coisas não é só da elite canavieira, é de todo o mundo.
Aliás, a elite canavieira hoje quase já não existe
em Pernambuco, está toda em São Paulo. É uma deformação da nossa formação
histórica. Não sei se isso jamais será resolvido satisfatoriamente.
O brasileiro
tem uma visível incapacidade de conceber a esfera pública e, sobretudo, a
objetividade da lei. Tem dificuldade de conceber a impessoalidade e a
objetividade da regra jurídica. Para ele, a regra jurídica é um negócio que se
deve aplicar aos outros. No caso dele, as regras jurídicas devem ser adaptadas
às conveniências dele.
O sr. não vê melhoria?
Não. Até sobre alguns aspectos há uma certa piora.
No sentido de que o país tornou-se muito mais rico. As oportunidades são bem
maiores do que eram antigamente e por isso mesmo essas coisas ocorrem em maior
volume.
Por exemplo?
A situação da magistratura. A magistratura
brasileira é uma caixa preta, ninguém sabe o que se passa lá.
Na verdade ela é mais preservada do que o Executivo
e o Legislativo, porque eles são mais transparentes, porosos.
A magistratura, não. Desde o período colonial teve
um espírito de corpo, um corporativismo. Sabia se defender quando era ainda a
magistratura da Coroa. Sabia se defender da sociedade civil e da própria Coroa,
que ela supostamente deveria representar.
Tinha seus próprios objetivos corporativos, mesmo
com o prejuízo dos interesses da Coroa. Essa incapacidade de distinguir uma coisa da outra se vê
na magistratura, o que é surpreendente, porque ela, mais do que qualquer outro
poder, deveria representar o espírito público da lei.
O sr. mostra também o uso de cargos públicos para
enriquecimento privado. E hoje?
Aquilo era feito em escala modesta naquela época.
Não se pode comparar com o que se dá hoje.
Como o sr. analisa a desnacionalização do setor
canavieiro nos dias de hoje?
Não me interesso em fazer nenhuma ligação entre o
que escrevo e a atualidade. Uma das vantagens da historia é não ensinar nada
sobre a atualidade.
Eu me desligo da atualidade quando pesquiso.
Atualidade não me interessa.
O sr. mostra uma realidade nada estática, mas
tumultuada, com batalhas, incêndios, prejuízos nos engenhos. Que dados faltam
dessa época?
A documentação não refere dois tipos de informação
que seriam importantes: o plantel de escravos e a extensão das propriedades.
Porque os relatórios foram feitos em períodos de
transição, logo depois do fim da primeira guerra. Muitos escravos haviam fugido
ou tinham sido levados pelos senhores para a Bahia ou haviam sido recrutados
pelos exércitos. Não havia informação fiel.
Qual o seu projeto hoje?
Estou
aposentado definitivamente. Por que mais trabalho? Fazer pesquisa histórica no
Brasil é chato por causa das bibliotecas, que são complicadas de consultar.
Como está a produção de história no Brasil?
O ensino de historia é mais profissional, tem mais
qualidade, mas há especialização demais. Os professores, quando têm bolsas da Capes, são obrigados
a apresentar anualmente um determinado número de folhas escritas. Isso pode
comprometer a visão de conjunto do historiador.
O historiador tem que fazer uma pesquisa a longo
prazo. Um livro de história normalmente, entre pesquisar e escrever, não leva
menos do que quatro, cinco anos.
É por isso que a história brasileira dos últimos
anos tornou-se mais profissional, mais competente, mas, em compensação, escreve
sobre assuntos altamente especializados.
Por quê?
Porque os
historiadores não têm tempo para digerir a documentação e formular de forma
mais ambiciosa.
Não há mais
aqueles livros ambiciosos como há 40, 50 anos. É tudo fechado nas
universidades, com temas muito específicos.
Os
historiadores brasileiros se conformam em escrever teses, fazendo livros de
vários colaboradores.
Não vejo
ambição individual de escrever grandes livros. Os historiadores se conformaram
com tópicos. E sofrem de uma certa moda.
Moda? Como assim?
Até os anos 60, os historiadores tinham que ser
marxistas. Depois se descobriu aqui a história da vida privada.
Para ver como os historiadores são, às vezes, tão
despegados da história de sua própria atividade, basta dizer que a história da
vida privada no Brasil começou com Alcântara Machado, em São Paulo, e com
Gilberto Freyre [primo da mãe de Evaldo].
Os historiadores brasileiros nos anos 80 e 90 só
foram descobrir a história da vida privada por meio dos franceses! Que estavam
começando com a moda. Hoje a moda deles é história administrativa e das elites.
Mas isso passa.
Daqui a
pouco inventarão uma outra moda. Enquanto as pessoas ficam na moda, não se
produz livros ambiciosos, de escopo ambicioso.
Qual seria um projeto ambicioso hoje?
Um assunto que é um buraco negro na história
brasileira: a regência. Não há nada de qualidade sobre o conjunto do período
regencial, de nove anos. Os historiadores se contentam com o que foi escrito
50, 70 anos atrás: que foi um período desastroso. Em vez de procurar o que havia de positivo no período
regencial e nas rebeliões regionais que ocorreram.
Qual a sua visão sobre o governo Dilma?
O historiador não é mais bem informado do que
qualquer outro cidadão a respeito da atualidade política. Há historiadores que
procuraram notoriedade por meio desse tipo de interesse pela atualidade, mas
não é o meu caso. Sobre atualidade eu não falo. Detesto polêmica.
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Enviado via Samsung Galaxy S Mobile Fabrício Augusto Souza Gomes
"Onde o homem passou e deixou marca
de sua vida e inteligência, aí está a História". (Fustel de
Coulanges)
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